Irineu Evangelista de Sousa, Barão e depois Visconde de Mauá, foi o grande empreendedor brasileiro do século XIX. Porém, sua fascinante trajetória terminou na dramática decretação de falência de seus negócios.
Em sua Exposição aos credores, Mauá expõe detalhadamente sua visão de empresário e os motivos de seus reveses, explicando que a decretação da falência, atribuída por ele a uma orquestração de forças políticas, ocorrera em detrimento dos credores, inclusive do Banco do Brasil que, já então sob controle estatal, lhe negou socorro.
Nessa histórica explicação aos credores (“não um desabafo, mas um gemido de quem sofre”), Mauá faz uma advertência que ainda parece atual: “Desgraçadamente entre nós entende-se que os empresários devem perder, para que o negócio seja bom para o Estado, quando é justamente o contrário que melhor consulta os interesses do país”.
Embora no último capítulo de sua vida o maior empresário do Império tenha conseguido pagar a maioria dos credores e alcançar a reabilitação legal, a articulação de interesses reacionários que fulminou seus negócios expõe de forma pedagógica a deficiência da legislação comercial daquela época, agravada pela fragilidade de um Poder Judiciário então completamente permeável às pressões fora dos autos.
Da queda de Mauá até hoje muita coisa mudou, mas a essência dos debates sobre a empresa em dificuldade permanece a mesma. Não há empreendedorismo saudável sem uma boa legislação que permita ao empresário em crise uma segunda chance para recuperar seu negócio e voltar a gerar emprego, renda e tributo, dando ao mesmo tempo previsibilidade e proteção aos direitos dos credores.
A Lei 11.101, de 2005, que trata de recuperação de empresas e falências, foi saudada como um passo importante para a modernização da atividade empresarial, a disseminação do crédito e a proteção aos investidores.
Na nova estrutura legal, o processo de recuperação de empresas, tanto judicial como extrajudicial, ganhou atenção especial do legislador, tendo como propósito a conjugação de esforços para se evitar, onde possível, a dramática situação de uma falência.
Em 2018, o governo Temer, por meio do então ministro Eduardo Guardia, apresentou um projeto de lei (Projeto de Lei 10.220/2018 ) destinado a promover aprimoramentos em tal legislação.
Tal proposição foi apensada ao Projeto de Lei 6.229/2005, que inicialmente pretendia suspender as execuções fiscais e inserir os créditos tributários no âmbito da deflagração do processo de recuperação judicial.
A matéria está no plenário da Câmara dos Deputados, tramitando em regime de urgência desde outubro de 2019 e tendo como relator o deputado Hugo Leal (PSD-RJ).
Em seu substitutivo, o relator relembra os cinco princípios norteadores para as alterações propostas nas Leis 11.101/2005 que constam da Exposição de Motivos do PL 10.220/2018:
i) preservação da empresa: em razão de sua função social, a atividade economicamente viável deve ser preservada sempre que possível, pois gera riqueza, cria emprego e renda e contribui para o desenvolvimento econômico. Este princípio, entretanto, não deve ser confundido com a preservação – a qualquer custo – do patrimônio do empresário ou da empresa ineficiente;
ii) fomento ao crédito: o sistema legal dos países da América Latina – Brasil inclusive – apresenta um histórico de pouca proteção ao credor, o que gera uma baixa expectativa de recuperação de crédito, impactando negativamente esse mercado por meio da elevação do custo de capital. A correlação entre a melhoria do direito dos credores e o aumento do crédito é demonstrada na literatura empírica sobre o tema. Uma consequência prática desse princípio é que o credor não deve ficar, na recuperação judicial, em situação pior do que estaria no regime de falência. Garantir ex-ante boas condições de oferta de crédito amplia a oferta de financiamentos e reduz seu custo;
iii) incentivo à aplicação produtiva dos recursos econômicos, ao empreendedorismo e ao rápido recomeço (fresh start): célere liquidação dos ativos da empresa ineficiente, permitindo a aplicação mais produtiva dos recursos, aposta na reabilitação de empresas viáveis, remoção de barreiras legais para que empresários falidos – que não tenham cometido crimes – possam retornar ao mercado após o encerramento da falência;
iv) instituição de mecanismos legais que evitem um indesejável comportamento estratégico dos participantes da recuperação judicial/extrajudicial/falência que redundem em prejuízo social, tais como: proposição pelos devedores de plano de recuperação judicial deslocados da realidade da empresa (em detrimento dos credores), prolongamento da recuperação judicial apenas com fins de postergar pagamento de tributos ou dilapidar patrimônio da empresa etc.
v) melhoria do arcabouço institucional incluindo a supressão de procedimentos desnecessários, o uso intensivo dos meios eletrônicos de comunicação, a maior profissionalização do administrador judicial e a especialização dos juízes de direito encarregados dos processos”.
Com base em tais princípios, a proposição legislativa em discussão pretende dar maior previsibilidade ao investidor estrangeiro nos casos de insolvência transnacional, inclusive buscando a simplificação de procedimentos entre juízos de diferentes países, com base na Lei Modelo da Uncitral (Comissão das Nações Unidas para o Direito Comercial). Esse tópico foi brilhantemente abordado pelo ministro Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça, em palestra intitulada “A cooperação entre juízos transnacionais – Court to Court Cooperation”, por ocasião do V Seminário de Direito das Empresas em Dificuldade, em setembro de 2019.
Outro ponto de grande relevância no substitutivo diz respeito à necessidade de enfrentar os embaraços relativos a dívidas tributárias que dificultam e, como é comum, inviabilizam o processo de recuperação da empresa devedora. Sobre tal questão, diz o relator:
“Com efeito, é preciso aproximar o Fisco da recuperação judicial, conferindo-lhe, tanto quanto possível, tratamento similar ao dos credores sujeitos à recuperação judicial. Em razão disso, estamos propondo a regulamentação da transação tributária, prevista no artigo 171 do Código Tributário Nacional, mas até hoje não disciplinada em nível federal. Reconhecemos que o ideal seria tornar o crédito fiscal sujeito à recuperação judicial e votação da assembleia geral de credores.
(…)
A criação de uma nova classe (fiscal) sujeita à recuperação judicial, além de demandar diversos ajustes na Lei 11.101/05 e na estrutura de atuação dos entes federativos perante as recuperações judiciais, poderia acarretar uma rejeição em massa dos respectivos planos. Por tais razões, estamos propondo autorizar a transação tributária, mas mantendo o crédito fiscal como não sujeito à recuperação judicial, de forma que as negociações com o Fisco sejam realizadas em paralelo às negociações com os credores sujeitos ao plano e, naturalmente, com os demais credores extraconcursais”.
Portanto, a transação tributária, ainda que bilateral entre o Fisco e o devedor em processo de recuperação judicial, abrirá um novo campo de discussão sobre a viabilidade da empresa em dificuldade, permitindo que o próprio ente estatal, na condição de credor, possa flexibilizar sua posição para propiciar a superação de dificuldades conjunturais do devedor.
Há outros tópicos de grande relevância tratados no substitutivo Hugo Leal, como a vedação para distribuição de lucros e dividendos pela devedora até a aprovação do seu plano de recuperação judicial, o tratamento para grupos econômicos, a figura da “constatação prévia” (perícia prévia) que poderá ajudar o magistrado a checar previamente a regularidade da documentação técnica que embasa o pedido de recuperação judicial, além de outros pontos.
Com a modernização da Lei de Recuperação de Empresas e Falências poderemos dar mais um passo para o “verdadeiro espírito de associação” a que tanto se referia Mauá, o empresário que ousou romper com um ambiente de negócios baseado na monocultura e no trabalho escravo e tentou criar o capitalismo empreendedor que até hoje encontra obstáculos em terras brasileiras.
Fonte: Conjur