Inteligência Artificial e direitos autorais: uma reflexão acerca da autoria

Guilherme Reis, graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); foi monitor de Direito Industrial na referida instituição de ensino.
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Guilherme Reis

No dia 11/04/2023, a Comissão de Cultura da Câmara dos Deputados realizou audiência pública para debater os desafios e os impactos do uso da Inteligência Artificial (IA) na propriedade intelectual, em especial no que se refere ao campo dos direitos autorais.
A oportuna iniciativa capitaneada pelo autor do requerimento, Dep. Áureo Ribeiro (SOLIDARIEDADE-RJ), contou com a presença de representantes de segmentos da indústria criativa, bem como com especialistas e estudiosos das áreas de IA e de propriedade intelectual. Dentre os temas discutidos, a questão da conceituação da autoria e a possibilidade ou não de proteção de “criações” feitas utilizando IA por meio da Lei de Direitos Autorais Brasileira (Lei 9.610/1998) permeou várias das exposições.

Neste aspecto, expositores como Yuri Nabeshima, chefe de Inovação do escritório VBD advogados, Peter Eduardo Siemsen, presidente da Associação Brasileira de Propriedade Intelectual (ABPI) e Raul Murad, professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ) ressaltaram que, pela legislação ora vigente, apenas a pessoa física pode ser considerada autora de obra intelectual passível de proteção de direitos autorais.

Segundo o artigo 11, caput, da Lei 9.610/1998, “Autor é a pessoa física criadora de obra literária, artística ou científica.” (grifo nosso). Dessa forma, o referido diploma legal deixa explícito que, como regra geral, a autoria é um atributo da pessoa física, do ser humano.

Entretanto, como toda regra, existem exceções, as quais são apenas aquelas que a própria lei elenca. Nesse sentido é que o parágrafo único do mesmo artigo 11 preceitua que “A proteção concedida ao autor poderá aplicar-se às pessoas jurídicas nos casos previstos nesta Lei.”

Além disso, mesmo nos casos de direitos titularizados por pessoas jurídicas, como no caso dos direitos conexos das empresas de radiodifusão, como pontuado pelos supracitados expositores, não se trata de autoria em si, mas de uma outra categoria jurídica cuja proteção tem outra base de legitimação. No caso dos direitos conexos, protege-se a contribuição estética ou procedimental dada pelo titular destes direitos à determinada obra intelectual, e não a criação da obra enquanto tal. Assim, a existência de direitos titularizados por pessoas jurídicas em nada afasta a escolha legislativa em considerar a autoria como uma prerrogativa essencialmente pessoal e, portanto, humana.

Cumpre ressaltar que a noção de autoria como uma capacidade essencialmente humana e de obra intelectual como uma criação do espírito estão no cerne da própria construção do sistema de direito autoral. Vale lembrar que o sistema autoralista francês (droit d’auteur), ao qual o Brasil se filia, tem sua origem na Revolução Francesa de 1789, em que as ideias iluministas de racionalidade e de valorização da individualidade substituíram a noção da criação como uma mera manifestação divina exteriorizada por meio das pessoas.

Dessa forma, o conceito de autoria como um atributo essencialmente humano e, portanto, da pessoa física, constitui aspecto fundamental para a existência do sistema de direito autoral existente no Brasil. Alterar tal premissa para permitir a proteção de obras criadas usando IA com o intuito de modernizar a legislação poderia, ao contrário, erodir um dos pilares sob os quais essa mesma lei se apoia.

Frise-se que não se trata aqui de ser contra ou de tentar impedir o avanço tecnológico. O uso de IA pelos próprios criadores pode levar a resultados surpreendentes e abrir novos caminhos para a criação de conteúdo. Entretanto, a ideia de modificar a legislação atual para alargar o conceito de autoria pode, ao invés de incentivar a produção intelectual, ameaçar a subsistência de toda uma gama de trabalhadores. A competição sem freios de autores com uma tecnologia que possui capacidade de processamento de dados e velocidade de exteriorização de resultados infinitamente superior ao de qualquer pessoa não parece ser justa.

Além disso, eventual alargamento do conceito de autoria pode aumentar ainda mais o poder das empresas detentoras de tais tecnologias, uma vez que, para além do poder econômico decorrente do desenvolvimento e do aprimoramento de tais ferramentas, essas empresas poderiam ainda adquirir proeminência sociocultural ao difundir um tipo de produto artístico (obras de IA). Tal massificação tem o condão de, a longo prazo, desvalorizar e inviabilizar as pequenas e médias produções culturais, prejudicando, mais uma vez, os autores e criadores.

Em relação a como proteger o investimento realizado pelas empresas de tecnologia no desenvolvimento de tais ferramentas de IA, a fim de permitir o uso de tais “criações”, ideias como a de abarca-las em outra categoria jurídica como a dos direitos conexos ou mesmo de inseri-las em uma lei própria parecem viáveis, conforme pontuado por Peter Eduardo Siemsen na referida audiência pública. Em ambos os caminhos, é possível alcançar um equilíbrio entre a proteção do investimento realizado pelos agentes econômicos e a manutenção da integridade da legislação autoralista brasileira na persecução do seu objetivo de incentivar a criação intelectual e de proteger a dignidade do criador, tanto pessoal quanto economicamente.

De qualquer forma, o debate acerca do melhor caminho a ser tomado encontra-se em aberto. A escolha de se considerar “criações” feitas por IA como de domínio público ou de se atribuir algum nível de titularidade à pessoa que fez os comandos junto à ferramenta ou à empresa criadora de tal tecnologia ainda precisa ser ponderada. Para tanto, a reflexão e a interação de especialistas, segmentos afetados, sociedade civil e Estado são necessárias.

Historicamente, a relação entre os autores e a tecnologia sempre foi tensa e conflituosa. E, para que se chegue a um ponto ótimo entre esses dois elementos, iniciativas que privilegiem o debate e a participação social ampla, a exemplo da referida audiência pública, são sempre bem-vindas.

*Graduado em Direito pela Universidade de Brasília (UnB); foi monitor de Direito Industrial na referida instituição de ensino.

E-mail: guilherme@reisadvocacia.com.br

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