Sem mudanças, cresce o risco de se prolongar a crise de 2008 e de haver conflitos cujo potencial para extrapolar fronteiras será cada vez maior

André Lara Resende | Para o Valor, de São Paulo

“O nacionalismo é uma doença infantil, a rubéola da humanidade”

Albert Einstein
Nelson Provazi

Quase todas as grandes questões de nosso tempo exigem um tratamento supranacional, mas a representação democrática continua pautada pelos limites geográficos dos Estados nacionais. É uma situação perigosa. Fica-se obrigado a optar entre atropelar os cânones democráticos e a paralisia.

 
Tomemos, por exemplo, questões mais especificamente ligadas à conjuntura. Como rever a regulamentação financeira internacional para evitar crises recorrentes? A crise de 2008 tornou flagrante o anacronismo dos limites de atuação dos bancos centrais e das demais agências nacionais de regulamentação financeira. Os Estados Unidos dão sinais, cada vez mais enfáticos, de que deverão pautar suas políticas fiscal e monetária exclusivamente de acordo com os seus interesses domésticos de preservação da renda e do emprego. As eventuais consequências para o valor internacional de sua moeda estão relegadas a um distante segundo plano. Fica, mais evidente do que nunca, a urgência da criação de uma moeda reserva internacional, que não esteja sujeita aos interesses de um emissor nacional. A crise de 1929 terminou por levar à revisão do sistema monetário internacional, ao fim do padrão-ouro e, em 1944, com o fim da Segunda Guerra, à conferência de Bretton Woods. Agora uma nova e profunda revisão do sistema monetário internacional é imperativo para que a grande crise financeira de 2008 possa ser considerada definitivamente superada.
 
Questões ainda mais complexas, como a da emigração, a do tráfico e do consumo de drogas e a do terrorismo, não têm, é claro, soluções exclusivamente nacionais, exigem um tratamento supranacional como condição para ser equacionadas. Os dois temas mais candentes de nosso tempo são intrinsecamente supranacionais. Primeiro, como reduzir a desigualdade e eliminar a pobreza absoluta? Segundo, como enfrentar o desafio de continuar a aumentar a qualidade de vida sem esbarrar nos limites físicos do planeta?

O problema da pobreza e da desigualdade foi até muito recentemente entendido como uma questão nacional, mas já não é possível pretender que pobreza e desigualdade só nos digam respeito quando restritas aos limites geográficos de nosso país. O mecanismo psicológico, que permite fazer coincidir os limites da responsabilidade e da empatia com os das fronteiras nacionais, não é diferente do que levou à aceitação da escravidão. Trata-se de fazer um corte entre “nós” e “eles”. Do ponto de vista evolutivo, quando o homem primitivo vivia isolado no seu grupo, constantemente ameaçado pela natureza, o sentimento de desconfiança em relação aos desconhecidos, aos que não fossem definidos como sendo dos seus, fazia sentido. Hoje é um sentimento profundamente irracional. Irracional porque perdeu funcionalidade, porque não corresponde mais aos interesses de todos. Não contribui nem para a qualidade de vida, nem para a sobrevivência da humanidade. Antes de se tornar imoral, um comportamento se torna disfuncional, portanto irracional, do ponto de vista do interesse geral dos homens, para só em seguida passar a ser percebido como imoral.

Nelson Provazi

O princípio de ocupar-se primeiro dos mais próximos continua evidentemente válido, para não cair no caso dos personagens de Nelson Rodrigues, os “intelectuais de botequim”, que nas décadas de 60 e 70, da varanda do bar do restaurante da moda, entre um drinque e outro, cegos para a miséria local, indignavam-se com o sofrimento dos vietnamitas. Mas basta um segundo de reflexão para concluir que o sofrimento de um boliviano ou de um brasileiro, separados por alguns quilômetros na fronteira, não nos deveria despertar sentimentos distintos, a não ser o da responsabilidade formal da nacionalidade. É justamente essa atribuição nacional da responsabilidade que se tornou anacrônica. Tornou-se anacrônica diante do progresso tecnológico nas comunicações, nos transportes, da redução das distâncias, do avanço do que se convencionou chamar de globalização.

A outra face do processo que transformou todos os grandes temas em questões supranacionais é a redução do espaço político nacional ao meramente administrativo. Questões administrativas requerem mais racionalidade burocrática do que liderança carismática, mas a política nacional, órfã dos grandes temas, guardou as instituições e os ritos de uma função que já não lhe compete, de uma realidade que já não existe. Tornou-se assim duplamente disfuncional: despreparada para a administração do dia a dia comunitário e presa à retórica de questões sobre as quais já não tem competência. Compreende-se assim a queda acelerada da influência da política e o desprestígio dos políticos, que passaram a competir pela atenção da mídia com o universo do entretenimento. Em busca dos holofotes, mas sem competência nem bandeiras, a política – e seus atores – fica a cada dia mais indistinguível do mundo das celebridades. A democracia de massa, intermediada pela mídia e regida pelos cânones da publicidade, transformou-se numa caricatura grotesca do que dela se pretende.

Em livro recém-publicado, “The Globalization Paradox”(1), o professor da Universidade de Harvard Dani Rodrik sustenta que é impossível ter simultaneamente democracia, soberania nacional e globalização econômica. Para preservar a globalização é preciso abdicar ou dos Estados nacionais ou da democracia. Para reforçar a democracia é preciso escolher entre o Estado nacional e a integração econômica mundial. Se o Estado nacional quiser ser preservado, deve-se abrir mão da globalização ou da democracia. Rodrik explicita imediatamente sua opção: os benefícios da integração econômica mundial são verdadeiros, mas foram superestimados, a democracia deve ser preservada. Como a diversidade no mundo de hoje é grande, a globalização irrestrita é incompatível com a democracia. Preserve-se o Estado nacional e a democracia, sacrifique-se, portanto, a globalização.

É difícil discordar de Rodrik com relação à tese de que a confiança excessiva dos benefícios de mercados livres e pouco regulamentados superestimou os benefícios e, principalmente, subestimou os riscos da globalização econômica e financeira. Também não se pode discordar que a democracia, dentre os três objetivos, tem evidentemente precedência. Seu equívoco é acreditar que para preservar a democracia se deve preservar os Estados nacionais e sacrificar a globalização. O termo globalização ficou associado ao período das últimas décadas de liberalização comercial e financeira internacional, mas a integração mundial é mais do que econômica e financeira. Globalização hoje é também – e sobretudo – a integração mundial promovida pela revolução tecnológica das comunicações e da internet. Daí a impossibilidade de sacrificar a integração mundial para compatibilizar a democracia com a preservação dos Estados nacionais. Nem a integração tecnológica é reversível sem sacrificar a democracia, nem a democracia é viável num mundo integrado, mas profundamente desigual. Aceitas as premissas, a conclusão é inequívoca: é preciso criar uma governança supranacional e reformular os Estados nacionais.

Acreditar que a democracia no mundo de hoje possa ser seletiva e localizada, que o que se passa em países distantes, de culturas distintas, não nos diz respeito, é um cacoete provinciano, incompatível com um mundo irremediavelmente interligado. As revoltas recentes, no Oriente Médio e no norte da África, são testemunhas da pressão democrática exercida pela revolução tecnológica das comunicações, em toda parte. Hoje, só há dois caminhos possíveis: ou bem o avanço internacional da democracia, ou então o regresso para um mundo de Estados isolados, em conflito permanente, obrigados a sacrificar a democracia e as liberdades individuais em nome da segurança nacional.

Fazer a defesa de uma governança supranacional não significa endossar sem ressalvas uma desregrada globalização financeira e comercial. Nem os mercados mais elementares podem prescindir de regras e instituições. Como é possível pretender que os mercados internacionais, sofisticados e complexos, com tantos interesses em jogo, possam dispensar a governança, o arcabouço institucional, para ser confiados à sua própria capacidade de se autorregular?

Reconhecer que os Estados nacionais tornaram-se ultrapassados, que a política nacional perdeu grande parte de seus temas e de seu apelo, não é o mesmo que sustentar que os governos regionais tenham deixado de fazer sentido e que as identidades culturais não precisem mais ser respeitadas. Muito pelo contrário. É justamente a falta de foco das políticas nacionais, entretidas com questões e problemas para os quais se tornaram incompetentes, o apelo demagógico a um nacionalismo, muitas vezes artificial, a distância excessiva entre os governantes e as comunidades, que fazem com que a governança global e governos democráticos regionais não sejam propostas competitivas, mas, ao contrário, verdadeiramente complementares.

Ao longo de toda a história, o comércio sempre esteve associado ao progresso e à civilização. O intercâmbio sempre foi uma força progressista, o cosmopolitismo sempre esteve associado à razão e às luzes. Não é sem razão que classificar alguém ou alguma coisa de paroquial tem conotações pejorativas. Na grande maioria das vezes, a defesa do isolamento, a desconfiança em relação ao estrangeiro, está associada ao conservadorismo e ao irracionalismo. Nada mudou. Mas, como sempre, o argumento não pode ser levado ao paroxismo. O apelo emocional da identidade comunitária é profundo e há sólidas razões para crer que a democracia representativa, para não se desfigurar, deve manter suas raízes na comunidade.

Seria ingênuo imaginar que uma governança supranacional pudesse ser facilmente construída, que estivéssemos às portas da superação dos Estados nacionais. Longe disso, como atestam as dificuldades por que passa a União Europeia, a mais audaciosa e importante experiência nessa direção. Mas os riscos de não se progredir no sentido de uma nova governança global são altos. Primeiro, a possibilidade de que, sem coordenação, se agrave a competição comercial, cambial e regulatória, que pode prolongar a crise de 2008, ou mesmo levar a um segundo mergulho recessivo, muito mais cedo do que se imagina. Segundo, a crescente tensão geopolítica, exacerbada pelo esgotamento das fontes de energia fóssil, a intensificação de catástrofes climáticas, num mundo interligado, mas profundamente desigual, que ainda não se percebe como num barco único, pode levar a conflitos cujo potencial para extrapolar os limites locais será cada vez mais alto.

Depois da crise de 1929, 15 anos e uma Segunda Grande Guerra foram necessários para se chegar à conferência de Bretton Woods, onde se desenhou o arcabouço jurídico-institucional que, na sua essência, perdura até hoje. A tomada de consciência da necessidade de revê-lo, de avançar na direção de uma governança supranacional, é fundamental para que até lá não seja preciso passar por mais uma grande crise ou uma nova guerra, agora mais que nunca, verdadeiramente mundial.

 (1)”The Globalization Paradox”

Dani Rodrik,W.W. Norton, New York, 2011

André Lara Resende é economista

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